Brasil e Estados Unidos fecharam um acordo militar inédito que, se explorado integralmente, poderá ajudar a abrir o maior mercado de defesa do mundo à indústria nacional.
O acordo, conhecido pela sigla RDT&E (sigla inglesa para pesquisa, desenvolvimento, testes e avaliação), será assinado na semana que vem, durante a visita do presidente Jair Bolsonaro a Miami.
Politicamente, servirá para Bolsonaro dizer que sua opção pelo alinhamento automático aos EUA de Donald Trump está rendendo frutos.
Na realidade, o RDT&E começou a ser negociado por iniciativa americana em 2017, no governo de Michel Temer (MDB), mas a aproximação entre Bolsonaro e Trump acelerou as tratativas.
Em março do ano passado, o Brasil recebeu o status de aliado privilegiado fora da Otan (a aliança militar ocidental). Isso em si não significa nada sem tratados específicos, e essa lacuna deverá começar a ser suprida pelo RDT&E.
O acordo, por ser internacional, precisa de ratificação dos Congressos dos dois países. A expectativa no Itamaraty é de uma tramitação rápida, ao estilo daquela do texto de salvaguardas que permitirá aos EUA lançar foguetes da base de Alcântara (MA) em cerca de seis meses.
Essa visão otimista vai depender do Parlamento em pleno conflito político com Bolsonaro e paralisado a partir de julho, devido às campanhas eleitorais municipais.
Dois acordos anteriores que permitiram a costura do RDT&E, de 2010, só foram aprovados cinco anos depois.
O RDT&E permitirá, uma vez valendo, que os dois governos assinem acordos de projetos. A partir daí, empresas de ambos os países podem ser selecionadas e contratadas para tocar programas, que sempre terão a gerência de autoridades brasileiras e americanas.
Negociadores do acordo não descartam que projetos sejam sugeridos diretamente por empresas interessadas e encampados pelos governos.
Em princípio, contudo, o financiamento dos projetos é público —o que não impede a possibilidade de investimentos de risco privados.
Do lado americano, o pote financeiro é virtualmente ilimitado no país que concentra 39% do gasto militar global. O principal fundo americano da área de defesa somou US$ 96 bilhões (US$ 432 bilhões nesta terça, 3) no ano passado.
Os EUA aplicam 29% de seu orçamento militar, o maior do mundo no ano passado com US$ 684,6 bilhões (R$ 3 trilhões) em investimentos: compra de equipamento, pesquisa e desenvolvimento.
O Brasil vive um momento de expansão de gastos militares sob Bolsonaro, com um aumento de sua fatia de investimentos dos previstos 9,5% em 2019 para 15,9% ao fim do ano.
Mas mesmo seus gastos totais (R$ 109,9 bilhões em 2019), os 11º maiores do mundo, não dão conta nem de duas semanas do dispêndio americano.
Pelo RDT&E, os projetos terão de ter contrapartidas de lado a lado. Elas não precisam ser equivalentes, contudo, o que sugere a capacitação da indústria nacional.
Eventuais produtos desenvolvidos terão propriedade intelectual compartilhada, e o acordo prevê acesso de empresas brasileiras a laboratórios e a indústrias americanas —desde que autorizadas.
A base industrial de defesa brasileira engloba cerca de 220 empresas, a maioria de pequeno e médio porte. Usualmente seu papel é ofuscado por vendas de grandes atores, como a Embraer, mas a vocação do setor é um ambiente semelhante ao das startups. O que falta é investidor.
As exportações em si tiveram um salto em 2019, de 30% ante o ano anterior, e fecharam em US$ 1,23 bilhão (R$ 5,5 bilhões) —considerado um recorde recente, mas longe da meta de US$ 6 bilhões e uma fração mínima do total exportado (US$ 224 bilhões).
Não há detalhamento, por questões metodológicas, mas é consenso na área que a era de ouro das vendas militares brasileiras foram os anos 1980.
Ali, fornecendo para clientes como o Iraque de Saddam Hussein em guerra com o Irã, o Brasil estava entre os dez maiores exportadores do mundo. Um indicador de valor relativo de exportações do Instituto Internacional de Pesquisa da Paz de Estocolmo aponta essa curva e a decadência posterior.
O RDT&E, negociado pelo Departamento de Defesa do Itamaraty e pelo Ministério da Defesa, tem a pretensão de ampliar a penetração brasileira no mercado dos EUA. A lógica é simples: as parcerias farão as empresas brasileiras candidatas naturais a entrar em cadeias de produção global puxadas por americanos.
Aí a mira se volta também para os outros 28 países membros da Otan, grande parte dos quais tem acesso ao fundo americano de defesa. Também o tem aliados como Israel e Coreia do Sul.
O Brasil já é o maior fornecedor de munição leve para a aliança militar ocidental, por exemplo. Para o governo brasileiro, é possível ampliar isso —o exemplo do cargueiro C-390 da Embraer, já encomendado por Portugal, é citado em toda conversa sobre o tema.
O novo acordo tem como um de seus pilares a adoção do padrão Otan para todos os produtos que vierem à luz, algo comum entre fabricantes ocidentais de produtos de defesa, mas que não é seguido de forma homogênea no Brasil.
Hoje há diversos entraves para vender armamento e sistemas correlatos aos EUA, um dos principais a exigência da presença física do vendedor em solo americano.
Nos dias 11 a 13, depois da visita de Bolsonaro, a comitiva de empresários do setor que o acompanhará irá a Washington com membros do Itamaraty e da Defesa para um seminário que visará explicitar ao governo dos EUA dúvidas e angústias brasileiras.
Mesmo vendedores com presença forte nos EUA se queixam de buracos negros tributários e legais que desestimulam negócios.
A simbiose estatal-privado é uma marca do setor de defesa no mundo todo.
“Se por um lado exportar é preciso, dada a reduzida rubrica de investimentos, por outro a receptividade do produto brasileiro no exterior depende fortemente de que os mesmos sejam empregados pelas nossas próprias Forças”, diz o presidente da Abimde (Associação Brasileira de Indústrias de Material de Defesa e Segurança), Roberto Gallo.
Um exemplo é o próprio C-390, que só existe porque a Força Aérea injetou R$ 5 bilhões em seu desenvolvimento desde 2008 e fez a primeira encomenda de 28 aparelhos, de R$ 7,2 bilhões.
FONTE: FOLHA DE S. PAULO